sexta-feira, 20 de março de 2015

Mobilização popular como resistência e garantia de acesso à água

Às vésperas da comemoração do Dia Mundial da Água, o Brasil tem sentido os efeitos de uma crise hídrica. No entanto, os povos do Semiárido têm construído possibilidades de garantir a gestão de água de forma organizada
Catarina de Angola - Asacom
Recife - PE

 “... Tenho fé em São José que ainda chove!
Tem-se visto inverno começar até em abril...”.
 (O Quinze, Rachel de Queiroz, 1930).

Capa do livro O Quinze, da escritora cearense Rachel de Queiroz, retrata a seca de 1915. | Foto: Reprodução internet (Blog Arte Cultural)
“Está chovendo pouco, muito pouco”. Assim descreve o agricultor José Odorico Borges sobre a pouca água que tem caído do céu no Quilombo da Lapinha, em Matias Cardoso, no Semiárido mineiro. Essa é a definição para o momento que passa não só mais o Semiárido brasileiro, mas grande parte do país. Às vésperas do Dia Mundial da Água, comemorado no próximo domingo, dia 22 de março, o Sudeste vive uma crise hídrica desde o final de 2013, mas que passou a ter repercussão nacional no segundo semestre do ano de 2014, pós grandes eventos como a Copa do Mundo e em meio às eleições. Crise inicialmente apontada apenas como fator climático, mas cada vez mais evidenciada como problema de gestão. No Semiárido brasileiro, este já é considerado o quinto ano de uma grande seca em partes da região.

As secas são fenômenos regulares no Semiárido. Neste ano, por exemplo, completa-se o centenário da seca de 1915, que inspirou o livro O Quinze, da escritora cearense Rachel de Queiroz, escrito em 1930. Apesar de ser fenômeno climático natural, hoje a seca pela qual passa a região é diferente de secas passadas como a de quinze. O agricultor Odorico já constatou que nos atuais dias chove menos, e não só ele, para a agricultora Maria Viana, de Ouricuri, em Pernambuco, “diminuíram e muito as chuvas”. No entanto, a população da região tem passado os fortes períodos de estiagem de forma muito diferente de anos atrás. Isso porque a forma de pensar a vida no Semiárido foi transformada ao longo dos anos e muito pela ação organizada da sociedade civil. A água passou a ser pautada como necessidade de ser descentralizada e como direito.

Em 1915 existia uma situação de fome e miséria. Campos de Concentração foram criados pela elite fundiária no Ceará, como é retratado no O Quinze, para evitar saques aos estabelecimentos. Era uma época forte de migração, principalmente para a região amazônica, por conta da borracha. Milhões de pessoas morriam de fome, as crianças, as mulheres e a população negra eram os mais atingidos. Mortes causadas pela fome em secas fortes não são tão distantes assim, não foram apenas no início no século passado. Mais de 3 milhões de pessoas morreram de fome na seca do período de 1979 e 1984 no Brasil, segundo dados da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).

“Hoje vivemos um novo tempo, com enormes contradições, lutas e desafios, mas não podemos negar os avanços e como foi e tem sido significativo a organização popular, que sempre demandou, sempre resistiu, sempre pautou a sociedade brasileira e continua fazendo isso”, afirma a coordenadora executiva da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), Valquiria Lima, sobre como se deu a mudança de cenário em relação às políticas para o Semiárido.

A estiagem e a situação de baixo volume dos reservatórios que abastecem as cidades do Sudeste, com muito foco na cidade de São Paulo, trouxeram a discussão sobre a questão da água de forma diferente. O que se tem visto sobre a estiagem no Sudeste é também uma cobrança da ação do poder público para garantir o acesso à água pela população e também pelas indústrias. Diferente de quando se fala da seca no Semiárido, que geralmente coloca as pessoas da região como fadadas ao clima seco, sem questionar a falta de ação do poder público em garantir ações específicas e adequadas à região e sem cobrar a descentralização do acesso à água.
Cisternas de placas captam água da chuva e possibilitam o estoque de água na região. | Foto: Ana Lira/Acervo Asacom
Nessa constatação de que o país passa por uma crise hídrica, o foco tem sido a discussão sobre a importância de se rever o uso individual da água. Discussão importante sobre a responsabilidade de cada pessoa, mas segundo o tecnólogo em saneamento da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Marzeni Pereira, em entrevista ao Correio da Cidadania, no Brasil, 70% da água é consumida pela agricultura, 22%, pela indústria e 8%, pelas residências. E quando se fala em redução de consumo, só se pontuam os 8%, mas não os 92%. Ou seja, as campanhas de consumo consciente têm foco no consumo individual ou familiar, mas não se questionam os gastos de água pelo agronegócio e pelas indústrias.

“A ética pessoal e o cuidado individual da água são importantes, porque você está lidando com a água tratada, a água mais cara e de melhor qualidade e a água que vai para o consumo humano. Mas não é o uso doméstico o problema da crise da água. A crise da água vem por um processo de destruição e de depredação dos nossos mananciais. E a civilização está destruindo os ciclos das águas brasileiras. Então a ética do cuidado com a água tem que passar desse nível pessoal para aquilo que a gente chama de governança hídrica”, alerta Roberto Malvezzi, assessor da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Desde 2002 a CPT registra os Conflitos por Água no Campo no Brasil. A pesquisa do ano passado registrou que 2014 foi o ano com número recorde em conflitos por água no campo, foram 127 ocorrências, envolvendo 42.815 famílias. “O aumento dos conflitos no meio rural não se dá em função da seca, ele se dá por conta dos projetos ditos de desenvolvimento, sobretudo as hidrelétricas, por isso que o Pará é o estado com mais conflitos”, explica Malvezzi.

Para ele, o país pode aprender com as estratégias que o Semiárido vem utilizando com relação à gestão da água. “A gente, nos últimos anos, na lógica da convivência com o Semiárido, tem criado uma nova cultura de cuidado com a água. Aquela cultura que a gente chama de gota d’água, de aproveitar a água da chuva, de reutilizar, de usar as diversas águas, a água mais limpa para beber, a outra água que você coloca para os animais. Isso tudo vai sendo criado no Semiárido por força da necessidade. Então todo trabalho nosso na ASA, nosso trabalho de educação contextualizada, ele é pioneiro no Brasil, não tem lugar nenhum isso e agora você vê muito disso que a gente faz aqui se replicando em São Paulo. Você não tem como escapar disso, porque essa estiagem não é um fenômeno passageiro e transitório, a perspectiva é que esse tipo de coisa retorne cada vez com mais frequência e mais severidade. Então a gente vai ser obrigado a ter uma outra cultura de cuidado com a água e com os mananciais”, explica.

Convivência com o Semiárido – “A gente que convive com o Semiárido, tendo um pouco de água a gente faz”, conta a agricultora Maria Viana. E ela faz mesmo. Por isso, tem em sua área que fica no Sítio Bento, em Ouricuri, Pernambuco, feijão, milho, sorgo, gergelim, fava, algodão, diversas hortaliças e muitas fruteiras como manga, cajá, laranja, mamão, cajarana, entre outros. Para ela, conviver com o Semiárido é pensar a gestão da água de forma equilibrada, e fazendo o reúso dela. Hoje ela faz isso com a ajuda da água que vem da chuva e que fica guardada nas duas cisternas que tem, uma com capacidade de armazenar 16 mil litros e que a água é usada para beber e cozinhar, e a outra que guarda até 52 mil litros e que a água é usada para aguar as plantas e alimentar os animais, além de outros usos de casa que se fizer necessário. As tecnologias sociais foram implementadas pela ASA, em um processo que promove a convivência com o Semiárido e que possibilita a cada pessoa fazer a gestão de sua própria água.

“Nesta noite (15/03) deu uma chuvada boa e a cisterna grande tá quase cheia”, conta feliz em saber que quando o barreiro e a barraginha que tem na comunidade secarem, lá para o mês de julho, tem água para passar todo o segundo semestre já garantida, guardada do lado da casa. Se fosse sugerir as pessoas das grandes cidades o que fazer para mudar a situação de seca? “Economizar a água e cuidar dos rios e riachos e principalmente do meio ambiente”. 

No entanto, a seca no Semiárido vai sempre existir, e Valquiria Lima, da ASA, reforça a importância de continuidade do processo de organização no Semiárido. “É necessário continuar fortalecendo a mobilização e o controle social, se hoje avançamos no campo das políticas públicas para o Semiárido, não pode perder de vista a importância da mobilização e do controle social que garante a permanência do que já conquistamos e buscar ampliar a garantia dos direitos dos povos da região”. 
fonte do blog de asa brasil

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