Antes de se aposentar, o agricultor Espedito Eusébio de Souza, 73 anos, percorria a pé 60 quilômetros do interior do Piauí até a divisa de Pernambuco em busca de “uma diariazinha aqui e outra acolá”. Desde que começou a receber sua aposentadoria rural, a seca deixou de ser motivo para medidas desesperadas. Primeiro porque ele não depende mais da pequena plantação de milho e feijão, ameaçada pela estiagem. Depois porque ele conseguiu pagar, em parcelas, R$ 4.800 por um poço artesiano.
Espedito escapou das estatísticas da extrema pobreza e passou a ser “apenas” pobre ao entrar para o grupo das 9,5 milhões de pessoas beneficiadas pela Previdência Rural, que conta com um orçamento quatro vezes maior que o Bolsa Família. “A Previdência Rural é o mecanismo mais importante de distribuição de renda e de redução das desigualdades, do ponto de vista regional e social”, afirma Guilherme Delgado, economista, ex-pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e um dos maiores estudiosos brasileiros sobre a questão agrária.
As regras previstas na reforma da Previdência do governo federal colocam em risco esse que é considerado um dos mais importantes mecanismos de combate à desigualdade. Para entender quem são os beneficiados pela Previdência Rural, e quais seriam as consequências dessas mudanças, a Repórter Brasil passou quatro dias em Paulistana, no Piauí, o município com o maior índice de aposentados rurais do Brasil. Na cidade de 20 mil habitantes, 37% deles recebem o benefício.
É ali, na zona rural dessa cidade do semiárido nordestino, que Espedito vive. Com a renda da aposentadoria, sua família saiu do grupo de aproximadamente 7,3 milhões de trabalhadores rurais brasileiros que vivem na miséria.
A antiga situação de miséria de agricultores como Espedito é amenizada pela previdência rural. Apesar de estar presente em apenas 30% dos domicílios no campo, o programa contribui com um terço da redução da pobreza rural nos últimos anos, segundo Alexandre Arbex, pesquisador do Ipea.
Ampliada com a Constituição de 1988, a previdência rural brasileira beneficia hoje 9,5 milhões de moradores do campo – metade deles do Nordeste e um quarto da região do semiárido, segundo cálculos de Delgado.
Além da redução da miséria, a Previdência Rural tem outro impacto claro: o estímulo à economia de pequenas cidades. “Se acabarem com as aposentadorias, 90% do comércio de toda a cidade será fechada”, calcula o comerciante João Batista Oliveira, que abriu há cinco anos uma loja de insumos agrícolas em Paulistana. Suas vendas aumentam 40% na época do pagamento dos benefícios.
Joaquim Júlio, proprietário de uma farmácia na cidade, também se preocupa com os possíveis efeitos futuros da reforma da Previdência. “Por conta das secas desde 2012, o que segura a venda são as aposentadorias. A maioria dos nossos clientes são aposentados,” diz o comerciante.
Apenas com as aposentadorias rurais, foram injetados em Paulistana R$ 77,7 milhões no ano passado, valor 59% maior do que a arrecadação total da Prefeitura, de cerca de R$ 46,2 milhões em 2015. O comércio é especialmente aquecido entre os dias 25 e 10 de cada mês – quando são pagos os benefícios do INSS e do Bolsa Família.
O prefeito da cidade, Gilberto José de Melo (PROS), conhecido como Didiu, também é comerciante, e confirma a percepção dos vendedores da cidade. “Antigamente, quando as aposentadorias eram de meio salário mínimo, não dava para nada. Quando passou a ser de um mínimo [com a Constituição de 1988], os comerciantes viram o dinheiro circular”, afirma.
A importância desses benefícios é semelhante em outras cidades do porte de Paulistana. A aposentadoria rural impacta diretamente a economia das cidades com menos de 50 mil habitantes, onde vivem 65 milhões de brasileiros. É nelas onde está a maior parte dos aposentados rurais: 4,7 milhões, o equivalente a 69% do total. Somente no ano passado, o INSS pagou R$ 49,2 bilhões a aposentados que vivem na zona rural dessas pequenas cidades.
Em seu segundo mandato, o prefeito de Paulistana começou a entrevista sinalizando ser favorável à reforma da Previdência. Disse que os ajustes, apoiados pelo seu partido no Congresso, são necessários. No entanto, quando detalhamos os impactos das mudanças previstas sobre a população rural, ele titubeia. “Eu diria que é muito difícil para o povo da nossa região pagar contribuição previdenciária todo mês. São pessoas muito sofridas, muitos não têm condições para quase nada. Fui trabalhador da roça também, conheço essa realidade,” diz o prefeito.
Essas mudanças, até então desconhecidas pelo prefeito, foram propostas pelo governo Michel Temer em dezembro do ano passado. A reforma da previdência propõe duas alterações principais nos benefícios rurais: aumentar a idade mínima da aposentadoria para 65 anos para homens e mulheres (hoje homens podem se aposentar com 60 anos e as mulheres com 55) e exigir contribuição individual e obrigatória por 25 anos. Atualmente, aqueles que se dedicam à agricultura familiar e plantam apenas para subsistência, como Espedito e sua mulher, podem se aposentar sem contribuições, mas comprovando 15 anos de atividades agrícolas ou de vida na zona rural.
A proposta, caso aprovada, não teria impactos só no campo, mas na economia brasileira como um tudo e, a longo prazo, na produção de alimentos. Simulações feitas pela Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) mostram que, caso essas regras valessem hoje, cerca de 60% dos atuais aposentados brasileiros não teriam esse benefício – por não terem condições de contribuir mensalmente.
Obrigar cada trabalhador a contribuir para a Previdência Rural significaria praticamente acabar com esse benefício, segundo Evandro Morello, assessor jurídico da Contag. “A reforma vai aumentar a pobreza no campo e estimular o êxodo rural. Pode também impactar na produção de alimentos básicos. Pode ainda gerar, a longo prazo, aumento de preços e impactar na arrecadação de no comércio dos pequenos municípios”, diz Morello. A agricultura familiar responde por 70% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro, segundo o Censo Agropecuário, de 2006, última vez que o levantamento foi feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Estudo do Ministério do Desenvolvimento Agrário mostra ainda que 83,6% dos ocupados agrícolas brasileiros não contribuem à Previdência, já que a maioria deles, 67%, não são assalariados. Portanto, se as regras propostas valessem hoje, a maioria dos aposentados rurais brasileiros seria excluída da previdência.
Apesar de a reforma não detalhar de quanto seria a contribuição mensal dos trabalhadores rurais, o secretário de acompanhamento econômico do Ministério da Fazenda, Mansueto Almeida, disse na última segunda-feira (20) à imprensa que a ideia é cobrar, no máximo, 5% do salário mínimo (ou R$ 46,85).
Para a maior parte dos trabalhadores rurais é impossível contribuir com esse valor. Como mostra o caso de outra moradora de Paulistana, Maria das Graças Conceição Almeida, 51. Ela vive basicamente da renda do Bolsa Família. Recebe R$ 156 por mês, além de R$ 248 e R$ 124 para cada uma de suas filhas. Quando lhe pergunto se teria dinheiro para contribuir mensalmente ao INSS para se aposentar, ela sorri de maneira tensa antes de responder. “Tem como, não. É pesado. Outro dia estava precisando de 20 reais para comprar um leite para esses meninos e não achei. Todo mês, não tem como. É absurdo,” diz a agricultura.
O casebre onde Maria mora, construído a cerca de 25 quilômetros da sede da cidade, não tem água encanada ou poço artesiano, e a sua pequena plantação de feijão corre o risco de não dar safra por causa da estiagem. Sua cisterna está vazia e a família toma banho em um barreiro que tem nas redondezas. A situação era amenizada por uma renda que vinha justamente da aposentadoria rural. “Quem me ajudava muito era a minha mãe, aposentada. Mas ela morreu há um ano. Sinto uma falta”, diz a agricultora.
A mudança na idade mínima é outro ponto que põe em risco a previdência rural, já que iguala trabalhadores urbanos e rurais, apesar da situação de ambos ser completamente diferente. Primeiro, porque cerca de 75% dos moradores da zona rural brasileira começam a trabalhar antes dos 14 anos de idade, de acordo com o estudo ‘Estatísticas do meio rural’, publicado em 2011 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Segundo, porque o trabalho em zonas rurais é mais desgastante. Foi considerando essas diferenças que a Constituição de 1988 permitiu que os trabalhadores rurais se aposentassem cinco anos antes dos urbanos (na aposentadoria por idade). “O trabalho no campo é árduo e penoso, não tem hora para começar e nem para parar; quando esses trabalhadores chegam a 55 e 60 anos já estão com sua capacidade laboral bastante comprometida e com muitos problemas de saúde”, afirma José Wilson Gonçalves, secretário de Políticas Sociais da Contag.
Há ainda uma contradição nas mudanças propostas pelo governo: o mesmo Estado que gasta recursos com o Bolsa Família cobraria dessas mesmas pessoas contribuição previdenciária. “É distribuir com uma mão e tirar com a outra”, analisa Arbex.
Apesar da sua importância social, a previdência rural é criticada como a principal responsável pelo chamado déficit da Previdência. No ano passado o INSS pagou R$ 108,6 bilhões em benefícios rurais e arrecadou R$ 7,9 bilhões. Já a previdência urbana foi superavitária por oito anos, até 2015.
O plano nunca foi, porém, para que essa conta “fechasse”. Segundo a Constituição de 1988, a Seguridade Social é financiada por contribuições dos trabalhadores assalariados, das empresas e também de toda a sociedade. O sistema previdenciário, então, se estruturou sob a lógica de bem-estar social e de solidariedade. Segundo a Constituição, é toda a sociedade, e não apenas os trabalhadores e as empresas, que sustentam o sistema.
A previdência rural possui outras fontes de financiamento que são pouco exploradas, devido a grande quantidade de empresas isentas e até mesmo de sonegação. Quando foi criada durante a ditadura militar com o nome de Funrural, a Previdência Rural começou com a cobrança obrigatória de 1% da produção vendida pelos trabalhadores do campo. Na prática, beneficiou apenas os empregados da indústria canavieira, que se aposentavam com meio salário mínimo. Foi apenas em 1971 que o governo começou a permitir a aposentadoria de trabalhadores da agricultura familiar, sem a obrigatoriedade da contribuição. O sistema era bancado pela contribuição sobre a produção vendida – quando vendida – e também das empresas que contratavam agricultores.
Essa política rompeu com a lógica de que a aposentadoria deve corresponder a uma contribuição obrigatória do segurado e equivaler ao padrão de seus rendimentos. O benefício, porém, era destinado a apenas um membro da família – o que praticamente excluía as mulheres do campo da seguridade.
Foi com a Constituição de 1988 que o valor da aposentadoria subiu para um salário mínimo, e as trabalhadoras rurais passaram a ter direito a se aposentar. “Não é um exagero dizer que o aposento rural contribuiu para a emancipação da mulher”, afirma Tadeu Arrais, autor do livro ‘Risco Social no Espaço Rural’.
Atualmente, trabalhadores do campo assalariados – que representam apenas 33% do total – são obrigados a contribuir à Previdência. Além disso, produtores rurais que vendem sua produção também devem destinar 2% do valor vendido ao INSS. Essa alíquota, no entanto, é retida pela empresa compradora, responsável pelo repasse aos cofres da Previdência. “A fragilidade desse sistema é deixar o repasse na mão da empresa, porque incentiva a fraude. Além disso, boa parte da produção é vendida de forma informal, sem notas”, afirma Júnior César Dias, pesquisador do Dieese.
Outra questão que colabora para a baixa arrecadação da previdência rural são as desonerações às empresas exportadoras de produtos agrícolas. Elas deixaram de recolher R$ 5,9 bilhões ao INSS em 2015, segundo a Receita Federal.
Enquanto parlamentares debatem a Previdência, e movimentos sociais protestam em todo o país contra a reforma, Espedito me conta da primeira vez que trabalhou na vida. Tinha sete anos. Passou uma semana agachado sob o sol, tirando a terra dos buracos cavados pelo pai, onde entrariam galhos retorcidos para uma cerca de pau a pique, de pé até hoje nos arredores da sua casa.
Naqueles tempos, não conhecia café nem açúcar. Tomava chá de mucunã, uma semente roliça e avermelhada que catava no mato para depois macerar e lavar em nove águas. De doce, apenas o mel de munduri, quando tinham a sorte de encontrar um favo por aí.
Com a aposentadoria, mais do que subir um degrau no porão da escala social brasileira, Espedito e Maria Tereza puderam fazer planos, investir em um poço artesiano, trocar a telha da casa, dar ração para as cabras e comprar remédios. Puderam também ajudar suas duas filhas e três netos a terem diariamente leite, cuscuz, tomate, arroz, feijão, açúcar e um mínimo de dignidade. “Agora, pelo menos temos o café certo no fim do mês”.
FONTE: REPÓRTER BRASIL: Ana Magalhães com fotos de Lilo Clareto, de Paulistana (Piauí)
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